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É só por merenda?
A Reforma de Córdoba (Argentina) de 1918 teve como estopim um aumento do preço das refeições universitárias. Ela trouxe um debate sobre papel da universidade pública na sociedade de classes latino-americana. De um lado aqueles que defendiam as pautas liberais e um arejamento da universidade, dominada até então pela Igreja Católica. Do outro lado, alunos que criticavam a formação para o mercado de trabalho e a necessidade de produção de intelectuais ligados às demandas populares.
Desde os anos 1970, dentro de contextos ditatoriais, a América Latina tornou-se campo de experimentação de reformas neoliberais. O Chile, palco fértil das reformas educacionais de Pinochet, promoveu a privatização direta e indireta da universidade pública, municipalizou o ensino fundamental e reestruturação o ensino técnico tendo em vista as necessidades das empresas. Desde 2001 os alunos do Ensino Médio (pinguinos) estão nas ruas reivindicando passe livre, desmunicipalização sem privatização, fim dos lucros e fim dos contratos precários de professores, pilares do ensino público, gratuito e de qualidade.
No Brasil, as reformas educacionais neoliberais se aprofundaram na ditadura civilmilitar, ganharam fôlego nos governos FHC e no lulismo. Depois de gerar mais de 15 milhões de empregos e promover algumas reformas fracas, dentre elas o PROUNI e a expansão tímida das universidades públicas, em 2013 o ciclo virtuoso do lulismo se esgotou, como se a tampa da panela tivesse explodido, dando origem a um novo ciclo de lutas. Lá estavam os estudantes de São Paulo promovendo inúmeras manifestações pelo passe livre e por uma cidade que não seja neoliberal.
Herdeira de 2013 são as ocupações de escolas em 2015, que bloquearam a tentativa de Alckmin de reorganizar o sistema de ensino e de fechar quase 100 escolas. Com muita riqueza organizativa, as escolas ocupadas funcionavam com comissões autogeridas e deram origem a um acúmulo político por parte dos estudantes. O Secretário da Educação pediu demissão, mas o problema do ensino médio e do ensino técnico persistem.
Nesta semana os estudantes ocuparam a sede do Centro Paula Souza reivindicando merenda. Segundo dados divulgados pela Folha de São Paulo, 75 das 219 ETECs (34%) fornecem “merenda seca”. Num país de matriz escravocrata, nada mais justo, afinal os netos dos escravos não precisam de muito mais que uma favela (nova senzala) e de “merenda seca”.
Segundo dados da Anvisa, nós brasileiros bebemos 5 litros de veneno por ano. Num país dominado por bois, soja e milho transgênicos..., sendo o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, não é de se duvidar que os alimentos consumidos pelos estudantes sejam de baixa nutrição e envenenados.
Vi nas faixas que o discurso não é apenas por merenda, apesar deste ser o mote principal. Aparece também a necessidade de uma CPI da merenda, dentre outras. Numa das faixas aparecia: “Nem PT nem PSDB”. A mídia e nós pesquisadores não conseguimos captar muitas coisas que estão nas entrelinhas do discurso dos jovens, tanto na forma de organização quanto no conteúdo político.
Acredito que pode estar nascendo no Estado de São Paulo, assim como na Argentina de 1918 e no Chile dos anos 2000, uma ala de estudantes críticos da educação e da qualificação pró-capital. Se isto for verdade, junto com a bandeira da merenda está aflorando a questão agrária, o problema da exportação de commodities pelas corporações, os alimentos envenenados consumidos pela nossa população e a transgenia. Assim como a alimentação está contaminada por venenos e por corrupção, a educação “para o mercado de trabalho” está envenenada pela pedagogia das competências, negando a necessidade histórica de uma educação para além do capital e de uma sociedade não produtora de mercadorias.
Autor: Henrique Tahan Novaes (Docente da FFC – UNESP – Marília - Brasil)
Créditos Imagem: Danilo Verpa/Folhapress.